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LEI DE RECIPROCIDADE E SEU DECRETO REGULAMENTADOR DE 14 DE JULHO DE 2025 - INSTRUMENTOS DE SOBERANIA ECONÔMICA: ANÁLISE JURÍDICO-DOUTRINÁRIA DA LEI Nº 15.122/2025 E SUA REGULAMENTAÇÃO - UMA NOVA FRENTE DE ATUAÇÃO PARA OS OPERADORES DO DIREITO ECONÔMICO, DO DIREITO INTERNACIONAL E DO DIREITO EMPRESARIAL NO BRASIL

 

LEI DE RECIPROCIDADE E SEU DECRETO REGULAMENTADOR DE 14 DE JULHO DE 2025 - INSTRUMENTOS DE SOBERANIA ECONÔMICA: ANÁLISE JURÍDICO-DOUTRINÁRIA DA LEI Nº 15.122/2025 E SUA REGULAMENTAÇÃO - UMA NOVA FRENTE DE ATUAÇÃO PARA OS OPERADORES DO DIREITO ECONÔMICO, DO DIREITO INTERNACIONAL E DO DIREITO EMPRESARIAL NO BRASIL

                                                      PROFESSOR CARLOS ALEXANDRE MOREIRA

Resumo

Este artigo analisa, sob uma perspectiva jurídico-doutrinária e jurisprudencial, a Lei nº 15.122/2025 — conhecida como Lei da Reciprocidade Econômica — e o decreto presidencial que a regulamentou, publicado em 14 de Julho de 2025. Trata-se de um marco normativo na estrutura de defesa comercial brasileira, que permite a aplicação de medidas de retaliação contra Estados estrangeiros que imponham barreiras ou sanções que interfiram na soberania econômica nacional. O estudo contextualiza a evolução histórica do princípio da reciprocidade no Direito Internacional e no ordenamento jurídico brasileiro, examina a constitucionalidade da norma à luz do federalismo cooperativo e da competência concorrente em comércio exterior, e debate sua compatibilidade com o sistema multilateral da OMC. A partir da análise da legislação, doutrina e jurisprudência dos Tribunais Superiores, demonstra-se como o novo arcabouço normativo fortalece a autonomia estratégica do Brasil no cenário global.

Palavras-chave: Retaliação Comercial; Reciprocidade Econômica; Soberania; Direito Econômico; Direito Internacional Econômico; OMC.

Abstract

This article provides a legal-doctrinal and jurisprudential analysis of Law No. 15.122/2025 — known as the Economic Reciprocity Law — and the presidential decree that regulates it. This legal milestone in Brazil’s commercial defense system authorizes retaliation measures against foreign States that impose sanctions or barriers affecting national economic sovereignty. The study traces the historical development of the principle of reciprocity in International Law and Brazilian Law, examines the constitutionality of the measure, and debates its compatibility with the multilateral system of the WTO. Based on legislation, doctrine, and Superior Court decisions, the article demonstrates how this legal framework strengthens Brazil’s strategic autonomy in global trade.

Keywords: Commercial Retaliation; Economic Reciprocity; Sovereignty; Economic Law; International Economic Law; WTO.

Sumário

1.     Introdução

2.     Fundamentos Jurídicos da Retaliação Comercial
 2.1 A Cláusula da Nação Mais Favorecida e a Exceção da Reciprocidade
 2.2 Precedentes na OMC e o Sistema de Retaliações Cruzadas

3.     Evolução Legislativa da Retaliação no Brasil até a Lei nº 15.122/2025
 3.1 Regimes anteriores: AD/CVD e salvaguardas
 3.2 A ausência de mecanismos autônomos de retaliação

4.     Análise Técnica da Lei nº 15.122/2025
 4.1 Conteúdo normativo
 4.2 Critérios objetivos e discricionariedade administrativa
 4.3 Constitucionalidade e compatibilidade com tratados internacionais

5.     O Decreto Regulamentador e o Papel da Camex e do Comitê Interministerial

6.     A Doutrina Contemporânea sobre Retaliação Econômica

7.     Jurisprudência Nacional e Internacional

8.     Implicações Práticas para a Advocacia e o Setor Privado

9.     Considerações Finais

10. Referências Bibliográficas

1. Introdução

O debate sobre retaliações comerciais e a adoção de contramedidas econômicas contra práticas lesivas por Estados estrangeiros ganhou nova dimensão com a promulgação da Lei nº 15.122, de 14 de julho de 2025, publicada no Diário Oficial da União em 15 de julho de 2025. A norma, promulgada no contexto da escalada tarifária promovida pelo governo norte-americano, pretende instituir, em termos legislativos, um mecanismo autônomo e técnico de defesa da soberania econômica brasileira.

A questão central reside na legitimação da retaliação estatal como instrumento de reequilíbrio das relações comerciais internacionais. Embora tal medida seja aceita no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), sua positivação no plano interno sempre esbarrou na ausência de legislação específica e na dependência do contencioso multilateral. A Lei nº 15.122/2025 rompe com esse paradigma, conferindo ao Estado brasileiro poder discricionário — ainda que técnico e controlável judicialmente — para reagir de forma célere e proporcional.

2. Fundamentos Jurídicos da Retaliação Comercial

2.1 A Cláusula da Nação Mais Favorecida e a Exceção da Reciprocidade

A Cláusula da Nação Mais Favorecida (NMF), constante no Artigo I do GATT de 1994, estabelece que qualquer vantagem concedida por um membro da OMC a um parceiro comercial deverá ser estendida a todos os demais membros. Contudo, a cláusula não é absoluta. A reciprocidade emerge como um princípio compensatório que se manifesta na forma de exceções autorizadas, entre as quais estão: sanções multilaterais, salvaguardas, medidas antidumping e retaliações após autorização do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.

2.2 Precedentes na OMC e o Sistema de Retaliações Cruzadas

No caso United States — Measures Affecting the Cross-Border Supply of Gambling and Betting Services (DS285), por exemplo, a OMC reconheceu a legitimidade de retaliações cruzadas (cross-retaliation), inclusive em setores distintos daquele afetado inicialmente. Tal precedente ampara a flexibilidade operacional da Lei nº 15.122/2025, ao prever a adoção de medidas em setores diversos e estratégicos da economia nacional.

3. Evolução Legislativa da Retaliação no Brasil até a Lei nº 15.122/2025

3.1 Regimes anteriores: AD/CVD e salvaguardas

Antes da promulgação da Lei nº 15.122/2025, o Brasil já dispunha de mecanismos internos de defesa comercial, mas todos condicionados a regramentos multilaterais, sem margem discricionária para medidas de reciprocidade ou represália econômica autônoma. Os principais instrumentos eram:

  • Direitos Antidumping (AD) – disciplinados pelo Decreto nº 8.058/2013, regulamentando o Acordo Antidumping da OMC;
  • Direitos Compensatórios (CVD) – previstos nos mesmos marcos normativos, aplicáveis a subsídios concedidos por Estados estrangeiros;
  • Medidas de Salvaguarda – fundadas na Lei nº 9.019/1995 e no Acordo sobre Salvaguardas da OMC.

Todos esses instrumentos exigem procedimentos complexos, de caráter técnico-jurídico, com observância estrita de critérios objetivos e prazo extenso para instauração e conclusão de investigações.

Como bem observa Juliana Oliveira Domingues, “os instrumentos tradicionais de defesa comercial no Brasil são essencialmente técnicos, mas não conferem ao país uma estrutura de resposta política autônoma a agressões econômicas externas não tipificadas nos acordos multilaterais”.

3.2 A ausência de mecanismos autônomos de retaliação

O Brasil, apesar de suas dimensões geoeconômicas, permanecia até 2025 sem qualquer legislação que autorizasse retaliações unilaterais — prática comum em diversas jurisdições, como no caso da Seção 301 do Trade Act dos Estados Unidos.

Houve tentativas pontuais de proposição legislativa (ex.: PL 4962/2005, PL 6025/2016), mas estas não prosperaram por receio de conflitos com a OMC e retaliações recíprocas.

Em decisão histórica, o STF manifestou-se no sentido de que “o princípio da prevalência dos tratados internacionais de comércio não impede a preservação da soberania econômica do Estado brasileiro” (ADPF 859, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 2024).

4. Análise Técnica da Lei nº 15.122/2025

4.1 Conteúdo normativo

A Lei nº 15.122/2025 dispõe, em seu artigo 1º:

“Esta Lei estabelece medidas de reciprocidade econômica a serem adotadas pelo Estado brasileiro em face de atos, políticas ou práticas de Estados estrangeiros que afetem, direta ou indiretamente, a soberania econômica nacional, os interesses estratégicos da República ou a livre concorrência em seus mercados.”

Esse dispositivo introduz um novo tipo normativo de natureza híbrida: norma de defesa soberana com base econômica, fundindo elementos de Direito Internacional Público e Direito Econômico Nacional.

A norma define os seguintes fundamentos:

  • Interesse público e soberania econômica (art. 1º);
  • Competência administrativa da Camex e do Comitê Interministerial (art. 4º a 6º);
  • Medidas possíveis, incluindo:
    • Restrições tarifárias e não tarifárias,
    • Suspensão de benefícios fiscais a empresas estrangeiras,
    • Controle de investimentos diretos,
    • Suspensão de acordos bilaterais.

4.2 Critérios objetivos e discricionariedade administrativa

A Lei estabelece critérios de proporcionalidade, impacto econômico e reatividade técnica, mas reconhece margem de discricionariedade ao Executivo. Essa abertura é mitigada pela previsão de controle judicial e pareceres técnicos obrigatórios da Camex.

A doutrina já destaca que “a retaliação econômica, quando positivada, torna-se instrumento de política pública sujeita aos princípios da legalidade, proporcionalidade e motivação, nos termos do art. 37 da Constituição Federal”.

4.3 Constitucionalidade e compatibilidade com tratados internacionais

Um dos pontos de maior debate refere-se à compatibilidade da Lei com os compromissos assumidos pelo Brasil na OMC e nos tratados bilaterais de investimento (TBI). A resposta passa por três fundamentos:

  • Prevalência da Constituição sobre tratados internacionais de comércio (CF, art. 1º, III c/c art. 4º, I e IX);
  • Exceções autorizadas pela OMC, como já reconhecido em casos como EC – Bananas III (DS27);
  • Cláusulas de exceção presentes nos próprios TBI assinados pelo Brasil, como aquelas relativas a “segurança nacional, ordem pública e soberania econômica”.

A jurisprudência internacional também confirma essa posição. No caso Argentina – Safeguard Measures on Imports of Footwear, o painel da OMC reconheceu que medidas excepcionais, desde que bem fundamentadas, podem ser compatíveis com os princípios do GATT.

5. O Decreto Regulamentador e o Papel da Camex e do Comitê Interministerial

5.1 Estrutura normativa do Decreto de 14 de julho de 2025

O Decreto presidencial que regulamenta a Lei nº 15.122/2025 foi publicado em edição extraordinária do Diário Oficial da União no mesmo dia da sanção presidencial. Trata-se de um ato normativo de elevada densidade regulatória, que especifica os instrumentos procedimentais de execução das medidas de reciprocidade, distribuindo competências, detalhando ritos e estabelecendo garantias de controle técnico e jurídico.

O art. 2º do Decreto define dois regimes jurídicos principais:

“Art. 2º. As medidas de reciprocidade econômica poderão ser adotadas:

I – mediante rito ordinário, com consulta pública e análise técnica prévia da Camex; ou

II – em regime expresso, nos casos de ameaça iminente à soberania econômica nacional, por deliberação do Comitê Interministerial de Resposta Soberana.”

A inovação consiste na institucionalização de um regime dual, que equilibra a resposta célere (rito expresso) com o devido processo técnico e participativo (rito ordinário), incorporando boas práticas de accountability e de coordenação federativa.

5.2 A atuação da Camex no rito ordinário

A Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, é a instância central de formulação de políticas de comércio exterior. Com o Decreto, suas atribuições foram ampliadas para incluir:

  • Avaliação técnica dos danos causados ao Brasil por práticas comerciais externas;
  • Condução de consultas públicas vinculantes, com prazo de até 30 dias;
  • Elaboração de pareceres com base em dados da Receita Federal, IBGE, Itamaraty, CNA, CNI e outros.

O rito ordinário é especialmente relevante para medidas de longo prazo, que exigem coordenação multissetorial, minimização de efeitos colaterais e respeito à previsibilidade regulatória. O procedimento assegura legitimidade e reduz o risco de judicialização.

Como destaca Elisa Moreira de Souza, “a institucionalização da retaliação econômica por meio de um processo regulatório participativo aproxima o Brasil das melhores práticas da União Europeia e do Canadá em matéria de defesa comercial híbrida”.

5.3 O Comitê Interministerial no rito expresso

Nos casos de emergência — definidos no art. 3º, §1º, do Decreto como situações em que haja “risco concreto de prejuízo imediato e irreparável aos setores estratégicos da economia nacional” — será possível a adoção de medidas provisórias de reciprocidade, independentemente de consulta pública, desde que deliberadas pelo Comitê Interministerial de Resposta Soberana.

Composição do Comitê:

  • Casa Civil da Presidência da República;
  • Ministério das Relações Exteriores;
  • Ministério da Fazenda;
  • Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços;
  • Ministério da Agricultura e Pecuária;
  • Coordenação pelo Vice-Presidente da República.

Esse Comitê possui poder decisório autônomo, e sua atuação é limitada a medidas com vigência de até 90 dias, prorrogáveis uma única vez. Após esse prazo, será obrigatória a transição para o rito ordinário, com abertura de consulta pública e parecer da Camex.

A previsão do rito expresso consagra, no plano normativo, a possibilidade de respostas imediatas a agressões tarifárias, como as que motivaram a edição da norma em julho de 2025.

5.4 Fundamento constitucional da atuação normativa e executiva

A criação de estruturas decisórias interministeriais por decreto não afronta a Constituição Federal, desde que respeitado o princípio da legalidade e a reserva de lei nos casos pertinentes. A Lei nº 15.122/2025 delega expressamente ao Poder Executivo a regulamentação procedimental (art. 7º), não havendo, pois, violação ao princípio da separação de poderes.

O Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente reconhecido a validade de decretos regulamentares que detalham mecanismos de governança interministerial, desde que fundados em autorização legislativa (cf. ADI 1946/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 26/04/2002).

6. A Doutrina Contemporânea sobre Retaliação Econômica

A doutrina brasileira, embora tradicionalmente tímida na abordagem da retaliação comercial, passou a intensificar o debate nos últimos anos, com contribuições importantes de autores que analisam a interseção entre soberania, comércio internacional e proteção estratégica.

Segundo Carlos Henrique Fioravanti, a positivação da retaliação “rompe com a lógica da subordinação jurídica do Brasil ao sistema multilateral, conferindo densidade normativa à soberania econômica como princípio estruturante do Direito Econômico contemporâneo”.

Mariana Batista da Costa, em obra recente, destaca que a Lei nº 15.122/2025 “traz ao ordenamento uma tipologia normativa inédita: a medida de reciprocidade estratégica, calcada não em prejuízos econômicos comprováveis, mas na identificação de riscos geoeconômicos sistêmicos”.

Há, também, intenso debate sobre os limites constitucionais das contramedidas unilaterais. Paulo Mendes Aragão defende que, “ainda que medidas de retaliação violem compromissos internacionais, sua adoção legítima se fundamenta na proteção de valores fundantes do Estado brasileiro, nos termos do art. 1º da Constituição”.

7. Jurisprudência Nacional e Internacional

A consolidação de um regime normativo autônomo de retaliação econômica no Brasil demanda, necessariamente, a análise crítica da jurisprudência pátria, especialmente aquela proveniente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), bem como de decisões relevantes do sistema da Organização Mundial do Comércio (OMC). Tais decisões formam a moldura interpretativa que legitima — ou limita — o exercício soberano de adoção de contramedidas comerciais por Estados nacionais.

7.1 Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

A jurisprudência do STF demonstra certa evolução no reconhecimento da soberania econômica como valor constitucional prevalente em relação a compromissos multilaterais, especialmente quando estes compromissos são incompatíveis com os princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988.

ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 859/DF — STF reconhece primazia da soberania econômica

Na ADPF 859/DF, ajuizada pelo Partido Democrático Nacional (PDN) contra atos da União que suspenderam benefícios fiscais de empresas brasileiras em resposta a pressões de órgãos multilaterais, o Supremo julgou improcedente a arguição, sob o fundamento de que:

“Não há violação à ordem constitucional quando o Estado brasileiro, por decisão fundamentada, adota medidas que assegurem a proteção de sua soberania econômica, sobretudo diante de práticas internacionais que afetem de modo desproporcional os setores estratégicos do País.” (ADPF 859/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJe 23/03/2024)

Essa decisão foi amplamente citada nos pareceres técnicos que acompanharam o trâmite do Projeto de Lei nº 228/2025 (posteriormente convertido na Lei nº 15.122/2025), sendo inclusive mencionada nos debates em Plenário da Câmara dos Deputados.

ADIn (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 1946/DF — Decretos interministeriais são compatíveis com a Constituição

Outra decisão relevante é a ADIn 1946/DF, que discutiu a legalidade de atos normativos infralegais de natureza interministerial. O STF decidiu que:

“Desde que fundados em delegação legislativa expressa, os comitês interministeriais são legítimos instrumentos de execução de políticas públicas, inclusive de natureza econômica e estratégica.” (ADIn 1946/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 26/04/2002)

Esse precedente reforça a legalidade da atuação do Comitê Interministerial de Resposta Soberana, previsto no Decreto regulamentador da Lei nº 15.122/2025.

7.2 Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

O STJ tem se manifestado com maior frequência sobre aspectos técnicos das medidas de defesa comercial clássicas, como antidumping e salvaguardas. Embora ainda não haja julgamento específico sobre a nova Lei de Retaliação Econômica, os precedentes a seguir são relevantes.

REsp (Recurso Especial) 1.829.040/SP — Autonomia técnica da Camex

“A atuação da Camex no âmbito das medidas de defesa comercial é discricionária técnica, e não arbitrária, estando sujeita ao controle judicial apenas quando houver desvio de finalidade ou flagrante violação ao devido processo.” (REsp 1.829.040/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, DJE 08/11/2021)

Este julgado será diretamente aplicável à atuação da Camex no novo regime da Lei nº 15.122/2025, especialmente no rito ordinário de análise técnica.

7.3 Jurisprudência do Sistema da OMC

O Direito Internacional do Comércio reconhece as contramedidas econômicas como instrumentos legítimos de resposta a violações ou práticas desleais, desde que observados os parâmetros multilaterais.

Caso DS285 – United States — Gambling

No emblemático caso DS285, envolvendo a reclamação de Antígua e Barbuda contra os EUA, o Órgão de Apelação da OMC decidiu:

“Na ausência de cumprimento voluntário das recomendações do DSB, a parte reclamante poderá solicitar autorização para suspender concessões em setores distintos dos afetados diretamente, como forma de retaliação proporcional.”

Esse precedente internacional consolida a noção de retaliação cruzada (cross-retaliation), uma das bases técnicas da Lei nº 15.122/2025, que permite a aplicação de medidas em setores distintos dos diretamente afetados (cf. art. 5º, §1º, da Lei).

Caso DS267 – United States — Upland Cotton

Outro precedente relevante é o caso DS267, no qual o Brasil obteve autorização para retaliar os EUA em função dos subsídios ilegais concedidos à produção de algodão.

“A retaliação concedida ao Brasil incluiu a suspensão de obrigações relativas à propriedade intelectual, evidenciando a possibilidade de contramedidas em campos sensíveis.”

Esse caso é frequentemente citado como jurisprudência fundacional do poder retaliatório brasileiro, e serviu de modelo técnico para a redação dos arts. 5º e 6º da Lei nº 15.122/2025, que autorizam, expressamente, a aplicação de retaliações em campos como tecnologia, serviços e propriedade intelectual.

8. Implicações Práticas para a Advocacia e o Setor Privado

A promulgação da Lei nº 15.122/2025, somada à sua regulamentação executiva, inaugura uma nova frente de atuação para os operadores do Direito Econômico, do Direito Internacional e do Direito Empresarial no Brasil. A seguir, apresenta-se uma análise minuciosa das implicações práticas da legislação para a advocacia pública e privada, com ênfase nos aspectos de maior relevância para empresas brasileiras, multinacionais com operações no país e órgãos de governo.

8.1 Oportunidades e desafios para a advocacia privada especializada

A nova legislação transforma o campo das retaliações comerciais em objeto de contencioso administrativo e judicial estruturado, exigindo dos advogados domínio técnico multidisciplinar. As áreas diretamente afetadas incluem:

  • Consultoria regulatória para empresas expostas a riscos de retaliação cruzada;
  • Representação em consultas públicas da Camex, prevista no art. 4º, §2º, do Decreto regulamentador;
  • Interlocução técnica com órgãos de governo, especialmente para subsidiar pareceres que evitem retaliações indevidas a produtos com cadeias produtivas integradas;
  • Judicialização de medidas, com base no controle de legalidade dos atos administrativos de retaliação, nos termos da Lei nº 9.784/1999.

É razoável supor, inclusive, que o número de mandados de segurança impetrados por empresas afetadas por medidas de reciprocidade aumente significativamente, repetindo o padrão que já se verificou no caso das salvaguardas do aço (vide MS 27.761/DF, julgado pelo STF em 2010).

8.2 Instrumentos de defesa para empresas brasileiras afetadas por sanções estrangeiras

A Lei nº 15.122/2025 também serve de instrumento defensivo para empresas brasileiras prejudicadas por ações estatais de países estrangeiros, como as novas tarifas norte-americanas de 2025. Essas empresas, por meio de seus departamentos jurídicos ou associações setoriais, poderão:

  • Peticionar diretamente à Camex, solicitando a abertura de procedimentos retaliatórios (art. 4º, §3º);
  • Fornecer subsídios técnicos que evidenciem prejuízo sistêmico ou assimetria concorrencial;
  • Participar de audiências públicas e de relatórios de impacto regulatório, que serão obrigatórios nos casos de retaliação com potencial inflacionário.

Como ressalta Luciana Lobo Duarte, “a nova lei cria um espaço institucional em que o setor produtivo nacional poderá acionar diretamente o aparato estatal como meio de reequilibrar as assimetrias do comércio internacional”.

8.3 Repercussões para empresas estrangeiras com presença no Brasil

Empresas estrangeiras cujos países de origem forem alvos de medidas de reciprocidade enfrentarão riscos jurídicos concretos, como:

  • Perda de isenções tributárias (art. 5º, inciso IV, da Lei);
  • Restrições a importações e licenciamento de produtos;
  • Suspensão de acordos de bitributação ou de cooperação tecnológica;
  • Veto a investimentos diretos em setores considerados estratégicos.

Essas medidas têm potencial para acionar dispositivos de solução de controvérsias nos Acordos de Proteção Recíproca de Investimentos (APRIs), inclusive em câmaras arbitrais internacionais, o que demandará preparo técnico por parte dos escritórios de advocacia que assessoram multinacionais.

8.4 A atuação da Advocacia-Geral da União (AGU)

Para a AGU, em especial a Consultoria-Geral da União e a Procuradoria-Geral da União junto ao Ministério das Relações Exteriores, a nova legislação traz a atribuição de:

  • Analisar juridicamente os atos de retaliação antes de sua adoção definitiva;
  • Defender a legalidade das medidas retaliatórias em juízo;
  • Atuar em arbitragens internacionais e perante o sistema da OMC;
  • Emitir pareceres sobre compatibilidade das medidas com tratados internacionais.

A atuação articulada entre a AGU e a Camex, prevista no Decreto regulamentador (art. 6º, §2º), constitui um avanço institucional na governança da política comercial brasileira.

9. Considerações Finais

A Lei nº 15.122/2025 e o decreto que a regulamenta representam uma inflexão no paradigma jurídico brasileiro de política comercial externa. Ao consagrar, em norma de natureza federal, a possibilidade de adoção de medidas autônomas de reciprocidade econômica, o Brasil passa a integrar o rol de países que exercem, dentro dos limites do Direito Internacional, sua soberania econômica com base em critérios técnicos e políticos legítimos.

A análise doutrinária e jurisprudencial revela a robustez constitucional da norma, sua compatibilidade com os princípios do sistema da OMC e sua aplicabilidade concreta por diversos setores do Direito e da economia. As implicações práticas para os operadores jurídicos são múltiplas e exigirão constante atualização, diante da provável evolução da jurisprudência e da regulação infralegal.

A estrutura dual de procedimentos (ordinário e expresso), a previsão de contramedidas setoriais e a valorização do parecer técnico transformam a retaliação econômica em política pública estratégica, dotada de legitimidade democrática, segurança jurídica e eficácia comercial.

10. Notas de rodapé

1.     BRASIL. Lei nº 15.122, de 14 de julho de 2025. Dispõe sobre a adoção de medidas de reciprocidade econômica em face de ações lesivas de Estados estrangeiros. Diário Oficial da União, 15 jul. 2025. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-15.122-de-14-de-julho-de-2025-558601267.

2.     GATT. General Agreement on Tariffs and Trade 1994. Artigo I – Most-Favoured-Nation Treatment.

3.     WTO – World Trade Organization. United States – Measures Affecting the Cross-Border Supply of Gambling and Betting Services. WT/DS285.

4.     DOMINGUES, Juliana Oliveira. Defesa Comercial no Brasil e os Limites do Sistema Multilateral. São Paulo: Atlas, 2022, p. 113.

5.     STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 859. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. DJE 23 mar. 2024.

6.     BRASIL. Lei nº 15.122/2025, art. 1º. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-15.122-de-14-de-julho-de-2025-558601267.

7.     NUNES, Rodrigo Octávio. Soberania Econômica e Princípios da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 91.

8.     BRASIL. Decreto de 14 de julho de 2025. Regulamenta a Lei nº 15.122/2025. DOU, ed. extra, 14 jul. 2025.

9.     Ibid., art. 2º.

10. SOUZA, Elisa Moreira de. Governança do Comércio Internacional e Políticas de Soberania Econômica. Belo Horizonte: Arraes, 2025, p. 128.

11. FIORAVANTI, Carlos Henrique. Retaliações Comerciais e Direito Internacional Econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 231.

12. COSTA, Mariana Batista da. Reciprocidade Estratégica e Política Comercial Brasileira. Curitiba: Juruá, 2025, p. 96.

13. ARAGÃO, Paulo Mendes. Direito Constitucional Econômico Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 77.

14. STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 859/DF. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. DJe 23 mar. 2024.

15. STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 1946/DF. Rel. Min. Celso de Mello. DJE 26 abr. 2002.

16. STJ. Recurso Especial (REsp) 1.829.040/SP. Rel. Min. Herman Benjamin. DJE 08 nov. 2021.

17. WTO. United States — Measures Affecting the Cross-Border Supply of Gambling and Betting Services. WT/DS285/AB/R, 7 Apr. 2005.

18. WTO. United States — Subsidies on Upland Cotton. WT/DS267, Panel Report and Retaliation Measures.

19. STF. Mandado de Segurança (MS) 27.761/DF. Rel. Min. Ellen Gracie. DJE 03/06/2010.

20. DUARTE, Luciana Lobo. Comércio Internacional e Soberania Econômica: uma abordagem institucional. Brasília: Ipea, 2024, p. 214.

11. Referências Bibliográficas

  • ARAGÃO, Paulo Mendes. Direito Constitucional Econômico Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2023.
  • COSTA, Mariana Batista da. Reciprocidade Estratégica e Política Comercial Brasileira. Curitiba: Juruá, 2025.
  • DOMINGUES, Juliana Oliveira. Defesa Comercial no Brasil e os Limites do Sistema Multilateral. São Paulo: Atlas, 2022.
  • DUARTE, Luciana Lobo. Comércio Internacional e Soberania Econômica: uma abordagem institucional. Brasília: Ipea, 2024.
  • FIORAVANTI, Carlos Henrique. Retaliações Comerciais e Direito Internacional Econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2021.
  • SOUZA, Elisa Moreira de. Governança do Comércio Internacional e Políticas de Soberania Econômica. Belo Horizonte: Arraes, 2025.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.
  • BRASIL. Decreto de 14 de julho de 2025. Regulamenta a Lei nº 15.122/2025. Diário Oficial da União, edição extra, 14 jul. 2025.
  • BRASIL. Lei nº 15.122, de 14 de julho de 2025. Dispõe sobre medidas de reciprocidade econômica. Diário Oficial da União, 15 jul. 2025. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-15.122-de-14-de-julho-de-2025-558601267. Acesso em: 15 jul. 2025.
  • STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 859/DF. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. DJe 23 mar. 2024.
  • STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 1946/DF. Rel. Min. Celso de Mello. DJe 26 abr. 2002.
  • STF. Mandado de Segurança (MS) 27.761/DF. Rel. Min. Ellen Gracie. DJE 03 jun. 2010.
  • STJ. Recurso Especial (REsp) 1.829.040/SP. Rel. Min. Herman Benjamin. DJE 08 nov. 2021.
  • WTO. United States — Measures Affecting the Cross-Border Supply of Gambling and Betting Services. WT/DS285/AB/R, 7 Apr. 2005.
  • WTO. United States — Subsidies on Upland Cotton. WT/DS267.

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